por Gio de Oliveira*
Esse ensaio é uma audaciosa pretensão de relatar a organização do eixo de trabalho Diversidade na Escola desenvolvido pela Plataforma Queerlombos desde 2016. Pretende dessa forma, reconstruir o caminho que nos levou a estruturação do eixo e quais foram as premissas conceituais e práticas que o pautaram e isso quer dizer muito da gente, mas muito diz também dos milhares de estudantes com quem nós encontramos desde então, diz das centenas e dezenas de gestores com quem trocamos. Esse eixo aparece como uma necessidade, uma falta dentro do que vínhamos realizando em nossas trajetórias profissionais, mas também como um aglutinador das propostas esparsas que já desenvolvíamos aqui e acolá.
No entanto, para tecer um bom panorama do eixo Diversidade na Escola e das ações da Plataforma Queerlombos entre a educação e o exercício da diversidade, irei pontuar algumas questões pertinentes a educação pública brasileira e em especial a mineira. É um fato estarmos vivendo tempos de polarização em todos os âmbitos da nossa organização social e isso reverbera e muito na educação pública do nosso país. Um eterno flaXflu, entre pais e professores, entre professores e gestores, entre estudantes e professores, entre professores e professores, entre defensores de uma Escola Sem Partido e de uma Escola Democrática.
Nesse ínterim vemos fenecer as práticas docentes utilizadas por aqui desde o século XIX, nada funciona, desde as metodologias até o equipamento de DVD. Os professores muitas vezes se veem cansados, desvalorizados e abandonados à sós com o giz. De fato um panorama triste para as nossas salas de aula. No entanto, acredito ser forçoso salientar que nem só de espinhos se faz uma rosa e nem só de pedras o caminho. De diversas formas tem se visto nas práticas docentes contemporâneas, uma preocupação ainda maior com as discussões em cidadania e a preparação do indivíduo para o protagonismo dos seus direitos e deveres.
Os currículos básicos da nossa educação apontam para isso na formulação de suas habilidades e competências. E existem sim educadores que se debruçam a essa odisseia nas suas práticas, na sua disciplina, no seu cotidiano profissional. Atentos a necessidade de uma formação completa e justa, esses educadores entendem a necessidade de discutir gêneros, sexualidades, raça, prevenção ao uso de drogas, trabalho infantil, ecologia e tantas outras pautas polêmicas nas escolas públicas dos ciclos básicos de ensino.
Há uma luta histórica pelas conquistas de direitos à e na educação brasileira, e sem dúvida, a legislação que fundamenta e respalda esse exercício é fruto dessa luta. Luta levada nas costas pelos movimentos dos trabalhadores, indígenas, negros e feministas e endossadas por educadores e especialistas de diversas áreas ao longo desse processo. Ter legislação que respalde a liberdade de discussão científica de temas que são comuns a vivência e subjetivação das pessoas num estado plurinacional como o nosso, é o mínimo que se pode exigir para a escola pública, enquanto política pública de reparação histórica aos direitos arrancados secularmente de sua diversa população.
Podemos pontuar como exemplo de conquista dos movimentos sociais na legislação para a educação, a lei 10.639/03, que prevê o ensino de História e Cultura Africana e Afro Brasileira nos ciclos de ensino das instituições de ensino públicas e privadas, em todas as disciplinas mas principalmente em História, Arte e Literatura. Tal como essa, a lei 11.628/08 veio para contemplar a história e a cultura indígena do país nos currículos. Também se constitui uma importante conquista, a implementação da Educação de Jovens e Adultos, a querida EJA. Presente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, ela vem de encontro à expectativa de formação integral na educação para todos os sujeitos. A LDB condensa a organização não só da EJA, mas também das diretrizes para a educação do campo, indígena e quilombola.
Bem como toda a legislação em educação, a lei 11.988/09 se constitui em texto importantíssimo para a vida docente e discente na escola. É a lei federal que institui a programação da Semana de Educação Para a Vida:
Art. 1o Todas as escolas de ensino fundamental e médio da rede pública no País realizarão, em período a ser determinado pelas Secretarias Estaduais de Educação, a atividade denominada Semana de Educação para a Vida.
Art. 2o A atividade escolar aludida no art. 1o desta Lei terá duração de 1 (uma) semana e objetivará ministrar conhecimentos relativos a matérias não constantes do currículo obrigatório, tais como: ecologia e meio ambiente, educação para o trânsito, sexualidade, prevenção contra doenças transmissíveis, direito do consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente, etc.
Art. 3o A Semana de Educação para a Vida fará parte, anualmente, do Calendário Escolar e deverá ser aberta para a participação dos pais de alunos e da comunidade em geral.
Art. 4o As matérias, durante a Semana de Educação para a Vida, poderão ser ministradas sob a forma de seminários, palestras, exposições-visita, projeções de slides, filmes ou qualquer outra forma não convencional.
Parágrafo único. Os convidados pelas Secretarias Estaduais de Educação para ministrar as matérias da Semana de Educação para a Vida deverão possuir comprovado nível de conhecimento sobre os assuntos a serem abordados.
Art. 5o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 27 de julho de 2009; 188o da Independência e 121o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Desta forma, assim com discutir as relações étnico raciais e a História e a Cultura Africana, Afro Brasileira e Indígena e a contribuição dessas matrizes para as artes, os costumes, as tradições e as infinitas outras matizes da construção desse país, na educação, é uma dívida histórica para com os concidadãos afrobrasileiros e indígenas, vejo que as questões relativas às outras pautas importantes para a constituição e desenvolvimento dos sujeitos também o são. E Semana de Educação Para a Vida é um instrumento legal para isso.
Há muito educadores, gestores e especialistas se ligaram nessa urgência. A escola tem direito a saber e trabalhar de forma séria e responsável as questões de ecologia, educação para o trânsito, direito do consumidor, sobre tudo! Mas esbarramos em censura, quando chegamos ao tema sexualidade… E esse tema de fato é delicado, é pra isso que a legislação institui premissas para a sua execução. Mas quando se fala em sexualidade, não há como dissociar a necessidade de se falar em gênero. E em identidade de gênero. E em disparidade de gênero. E em interseccionalidade entre gêneros e raça.
Para não falar de abordagens problemáticas da história do índio no Brasil e das representações estereotipadas de abril. Dos cocares de indígenas norte americanos nas cabeças de todas as crianças do solo nacional na semana de 19 de abril. Para não falar da história do negro no brasil nas representações estereotipadas das programações tapa buraco de novembro. Para não falar de intolerância religiosa também nos espaços escolares, quando educador se propõe a fazer o trabalho de forma séria, em metodologia respeitosa e por vezes seja censurado, condenado, por levar macumba para dentro da escola. Tudo feito na correria, para gerar registros que constar quando da visita da inspeção. Tudo bem rezar o Pai Nosso na entrada da aula, mas nada de música percussiva de origem africana ou afro diaspórica, porque de tanto temer, veem o Diabo, o grotesco em tudo e não podem lidar com a diversidade das expressões.
Tocar nisso tudo, em questões tão caras para uma sociedade patriarcal, machista, racista e misógina e com valores tão absurdos quanto o são arraigados, pode e sempre custa para quem as encara. Mas de tão necessário que é, existe em Minas Gerais, uma norma que reconhece e reforça essa necessidade e caminha também nesse sentido, o de abordar as questões em que o currículo engessado do século XIX não toca. Trata-se da lei 22.413/16 que institui a Semana Estadual das Juventudes. É mais uma conquista social ter um texto como esse aprovado e em vigência na Constituição do Estado e isso porque ele condensa diversas demandas que são intrínsecas ao desenvolvimento integral da infância e da juventude.
Desde o debate por políticas públicas para a juventude, até discussões em educação, cultura, esporte, direitos humanos, cultura de paz, sexualidade, os índices de violência, morte e desaparecimento dos jovens negros. São nove os objetivos principais que norteiam a discussão na Semana Estadual das Juventudes:
I – incentivar o debate sobre políticas públicas para a juventude;
II – discutir temas relacionados à juventude nas áreas de educação, cultura, esporte e lazer, sexualidade, drogas e trabalho;
III – estimular a participação dos jovens no processo de decisão política regional e nacional e a maior participação da mulher na vida política;
IV – fortalecer a cultura da paz, dos direitos humanos e das igualdades fundamentais;
V – promover o enfrentamento da precarização do trabalho juvenil;
VI – debater e propor medidas de enfrentamento aos altos índices de violência, morte e desaparecimento de jovens negros e pobres no Brasil;
VII – discutir medidas para a proteção de segmentos específicos de jovens, como índios, quilombolas, camponeses ou ribeirinhos;
VIII – debater os direitos de igualdade de gênero como exercício de cidadania e incentivo a uma maior participação da mulher na vida política nacional;
IX – debater as garantias de sociabilidade e igualdade de direitos dos sujeitos LGBT.
Belo Horizonte, aos 16 de dezembro de 2016; 228º da Inconfidência Mineira e 195º da Independência do Brasil.
FERNANDO DAMATA PIMENTEL
Como pudemos perceber embora hajam tantos respaldos técnicos e conceituais para a discussão do que eu chamei acima de pautas polêmicas na escola pública, esse trabalho ainda encontra dificuldades enormes, extremas para a sua realização no efetivo exercício cotidiano de ser e estar escola pública. Inúmeras são as pressões e censuras à que estão expostos os educadores que se jogam nesse exercício. E também são muitas as programações dessas semanas, tanto a Estadual das Juventudes quanto a federal de Educação Para a Vida, bem como a da Consciência Negra e qualquer outro tipo de discussão considerada progressista demais, acaba por ocorrer para inglês ver, novamente algumas tantas fotos para constar no relatório de visita da Inspeção Escolar.
É nesse contexto que se insere em 2016 a então coletiva Diversidade Ouro Preto e hoje Plataforma Queerlombos, quando atendeu ao desejo de alguns estudantes em ter uma oficina de teatro na programação da ocupação da sua escola. Naquele momento, ainda não havia sido estruturado pela Coletiva um eixo de programação voltado ao público das escolas públicas embora já o fizéssemos em nossas carreiras. Contávamos é bem verdade, também com uma gama de educadoras e educadores somando esforços nas programações e ações da coletiva, mas em outras perspectivas.
Contando também com artistas de diversos segmentos, rapidamente foram cotados dois artistas da cena e professores de teatro, para organizar uma metodologia e executar uma oficina de teatro naquela ocupação de estudantes secundaristas. Saulo Rodrigues e eu optamos por misturar exercícios de improvisação teatral, adaptados da poética de Viola Spolin e também de Augusto Boal. As cenas produzidas foram apresentadas somente para os presentes na ocupação naquela hora e reverberou e um denso debate entre os ocupantes da escola.
Me recordo que o que mais me impressionou naquele momento, foram os links que os jovens teciam entre as pautas do movimento de ocupação das escolas públicas na criação das pequenas esquetes apresentadas. Nesse mesmo ano, facilitamos um Campeonato InterDrag de Gaymada, com a colaboração da Toda Deseo e vários outros artistas da cena mineira, sediado também em uma ocupação secundarista de escola pública. Varri toda a quadra de esportes da escola com ajuda de duas camaradas da coletiva. Ali durante um dia chorei e ri ao presenciar momentos de verdadeira comunhão e efusão de trocas de conhecimento. A organização dos jovens no espaço ocupado, permitiu entre eles uma movimentação coletiva e democrática que pensava e pulsava ideias e ações.
Ganharam o campeonato. Mas ganharam quando organizaram e cuidaram da horta, quando pintaram os muros e as carteiras e quando se organizaram para gerar movimento, pensamento e prática, experimentação de novas epistemes e novos modos de se viver, de passar, como um cardume a executar uma bonita peça de dança, uma coreografia ocupando um espaço. Particularmente, ganhei o poder de perseverar.
As discussões da Semana de Diversidade de Ouro Preto e Mariana de 2016 ainda contou com oficinas, rodas de conversa, filmes comentados, espetáculos e performances em departamentos ocupados da Universidade Federal de Ouro Preto, estendendo assim suas ações no nível superior da educação pública no território onde estava sendo gerada. Se constituindo um verdadeiro eixo de trabalho e pesquisa em diversidade. Cresceu ao sabor da necessidade. Em todos os níveis de ensino, em todas as ocupações, a urgência de se falar do que é básico saber.
Após o processo de sermos contatados com demandas assim tão específicas e executá-las, a Coletiva Queerlombos continuou pensando na possibilidade de propor outras programações nesse sentido, estender propostas pela rede pública de ensino, para ir de encontro aos discentes, docentes e gestores, para pensar e agir frente a elaboração de boas abordagens de discussão das aqui chamadas pautas bomba da escola pública. Essa pauta prontamente ocorreu a toda a coletiva, passamos meses discutindo e propondo novas metodologias e abordagens, leituras e estudos.
Em 2017 tive a oportunidade de apresentar o espetáculo Corpreto no eixo Diversidade na Escola, na escola em que trabalhava como professor na época no distrito de Santo Antônio do Salto em Ouro Preto. Além do espetáculo, aconteceu a roda de conversa Trançando Conversas, com Daniela Mara e Karla Ribeiro, integrantes da Plataforma Queerlombos. Dessa forma pude mostrar um pouco do meu cotidiano de professor para as minhas colegas de plataforma e também para meu parceiro de cena Pedro Gaban, que junto de mim e Karla, compunha o espetáculo. Puderam ver as condições da estrada, a beleza e a curiosidade daquele povo e o seu jeito bonito de falar cantando. Tive a oportunidade de compartilhar meu trabalho de ator com os meus alunos e meus colegas professores, apresentando um espetáculo com o qual eu já circulava há dois anos aquela altura.
E em 2018, em parceria com a coletiva Ninfeias, o Núcleo de Investigações Feministas da UFOP, conseguimos juntes elaborar uma proposta ainda mais abrangente. Foram executadas oficinas e rodas de conversa, palestras, exposições em diversas escolas estaduais e municipais de Ouro Preto e Mariana. Estudantes dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio tiveram programações em diversas escolas do centro e da periferia desses municípios e também em escolas dos distritos deles. O eixo se estruturava ainda mais e ganhava ainda mais força para a sua consolidação. E tivemos consciência desse processo de expansão. Discutimos isso em nossas reuniões de produção e estudos, discutimos isso com as Ninfeias. Em 2019 mantivemos o mesmo fôlego.
Tendo executado propostas ao longo dos anos anteriores, em 2019 pudemos estreitar laços com escolas com que vínhamos trabalhando nos anos anteriores. Tivemos a oportunidade de atender um mesmo grupo de alunos de maneira continuada em algumas escolas. Expandimos a natureza das ações escolhidas pela nossa cuidadosa curadoria para essas escolas. Conseguimos atender turmas de Jovens e Adultos. Fortalecemos nas escolas por onde passamos, o direito a saber que a escola tem. Neste momento, em casa, é o que seguimos fazendo. Pensando formas de fortalecer e expandir esse trabalho, percorrer outras paragens, quadras, salas e bibliotecas
Ao nos jogar para o espaço da escola pública, jogando o refletor de luz para as tais pautas bomba da escola pública, auxiliamos a escrita de uma nova dramaturgia dos espaços e apoiamos o acontecimento de novas performatividades do existir. Nosso trabalho é de apoio e cooperação ao desenvolvimento e fortalecimento a liberdade de ensino das instituições públicas em todos os níveis de ensino. Seguimos essa bandeira porque sabemos ser necessária uma educação emancipadora, e porque sim e assim o é. E o nosso aprofundamento nessa prática é consequência do exercício de revisitar a escola, do entendimento do poder transformador que esse espaço tem. Construir esse eixo e refiná-lo através dos anos é parte de uma luta antiga que antecede a todos nós. Tem a ver com o desejo de comunhão e bem estar entre todos os devires possíveis. É parte da construção do aclamado novo mundo que tanto sonhamos, que tanto precisamos.
Referências Bibliográficas
Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Brasil, 1996;
Lei Federal 11.988/09, Semana de Educação Para a Vida, Brasil;
Lei Estadual 22.413/16
Lei Federal 10.639/03
Lei Federal 11.645/08
Gio de Oliveira
Sou ator, professor e performer, e também exerci trabalhos enquanto dramaturgo, músico, produtor cultural, iluminador e diretor teatral, e antes de ser isso tudo, sou Bixa, sou Preta, sou filho de Axé. Com formação em Artes Cênicas Licenciatura pela Universidade Federal de Ouro Preto (DEART/IFAC/UFOP, 2018), desenvolvo meu trabalho enquanto professor e ativista pelos direitos humanos na cidade de Ouro Preto/MG e arredores, quer seja através de rodas de conversa e oficinas, quer seja enquanto artista e professor. Componho a Coletiva Queerlombos, onde realizo pesquisas e práticas desde 2016. Desde então, tenho me dedicado principalmente a organização do eixo Diversidade na Escola, verve muito importante do nosso trabalho.