por Mayra Pietrantonio

 

“Podemos aprender a trabalhar e a falar apesar do medo, da mesma maneira que aprendemos a trabalhar e a falar apesar de cansadas. Fomos educadas para respeitar mais ao medo do que a nossa necessidade de linguagem e definição, mas se esperamos em silêncio que chegue a coragem, o peso do silêncio vai nos afogar.

O fato de estarmos aqui e que eu esteja dizendo essas palavras, já é uma tentativa de quebrar o silêncio e estender uma ponte sobre nossas diferenças, porque não são as diferenças que nos imobilizam, mas o silêncio. E restam tantos silêncios para romper”

(LORDE, Audre,1977)

 

Sapatão

Corpos abjetos, corpos dissidentes, corpos silenciados, corpos indesejados. Mulheres invisíveis e invisibilizadas pelo sistema patriarcal que encontrou mecanismos para calar sua existência. Existe uma fala recorrente de que a “lésbica quer ser homem”, dissociar gênero e sexualidade é uma tarefa difícil, pois vivemos em uma sociedade binária, com discursos e práticas hegemônicas em relação aos papeis sociais desempenhados por homens e mulheres. “A criação de corpos sexuados, a instalação de diferenças e de espaços de exclusão afirmam uma normalidade que apaga o múltiplo e naturaliza o binário” (NAVARRO, 1999, p. 118).       A Masculinidade não pertence aos homens, é uma construção social. As mulheres masculinas sempre foram lidas como aquelas que reforçam os signos culturais do homem opressor, como se masculinidade e feminilidade não fossem também construções forjadas e culturais que existem no sistema patriarcal capitalista.

..nem sempre produzem o corpo dócil que acata plenamente o ideal social, (elas) podem delinear superfícies corporais que não signifiquem as polaridades heterossexuais convencionais. Estas superfícies corporais variáveis ou estes Eus corporais podem assim se converter em locais de transferência de propriedades que já não correspondem a uma anatomia. (BUTLER, 2002, p. 105)

 

Por isso Mulheres que performam masculinidades, não desejam tornar-se homens[1], apenas escolheram não seguir os padrões de comportamentos impostos socialmente, e é neste lugar, nas frestas da sociedade patriarcal, machista e misógina que encontramos espaço de Ser e existir.

No sistema binário de gêneros, a heterossexualidade é não apenas naturalizada, mas se torna de fato, compulsória, e sexualidades e gêneros que escapam a este modelo são classificadas como patológicas e perversas. Dentro de tal estrutura, é quase impossível para a masculinidade do sapatão ser reconhecida como outra coisa que não a mera imitação da masculinidade heterossexual. (BERSTEIN, 2001, p.99)

 

         E que lugar é esse que nos foi imposto? Que corpo é esse que causa repulsa? Como as lésbicas com seus corpos abjetos, são vistas e integradas na sociedade? Segundo Judith Butler os corpos abjetos são corpos cujas vidas não são consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante.

  É na resistência de um corpo que carrega as marcas de opressões vividas desde a infância que desenvolvo pesquisas com meu corpo performativo lésbico/sapatão que incomoda, transformando esse incômodo em potencialidades de expressões e linguagens artísticas e memórias sociais da existência de uma história que não teve direito de existir.

 

EU EXISTO, EU [RE]EXISTO

        A lesbianidade no Brasil sempre foi um assunto pouco falado nas ruas, na televisão, em centros de cultura e memória, nas escolas, nos museus. Nunca houve uma real representatividade e nem representação do que seria uma mulher lésbica. Como então essa existência poderia estar em mim se nem ao menos eu tivesse em algum momento da juventude (no final dos anos 90 e início do novo século) alguma mulher lésbica que eu pudesse me identificar? A parada do Orgulho Gay em São Paulo (1997) já existia, mas a representatividade de mulheres cis lésbicas era quase inexistente, e em certa medida ainda é.

Rememorando essa história é que percebi que fomos sistematicamente invisibilizadas. Somos mulheres que amam mulheres, e que rompemos com a lógica patriarcal vigente na sociedade brasileira, isso faz com que nossos corpos, nossas vivências e subjetividades sejam lidas como não pertencentes a essa sociedade. Ora, se nosso corpo rompe com a estrutura fixa da sociedade machista, patriarcal e misógina, rompemos a norma que é escrita e falada majoritariamente por homens cis brancos, que estão em todas as instâncias de poder que constroem e ditam o sistema, seja nas esferas sociais, políticas e culturais. “Mulheres, lésbicas e artistas não correspondem exatamente à definição do sujeito universal que, de maneira geral, é construída como um sujeito masculino, branco e europeu”. (BERNSTEIN,2001, p.102)

Como então ocuparemos os lugares de memória e construção das subjetividades individuais que passam a ser coletivas quando são exploradas em campos de visibilidade? Nossa construção de autoconhecimento é ampla, no núcleo familiar, na escola, na sociabilidade da rua, nos museus, etc., assim, seguimos regras comportamentais naturalizadas no cotidiano, que são desde a estética padronizada aos relacionamentos heterossexuais cisgênero, que Adrienne Rich cunhou, como Heteronormatividade Compulsória, que sistematicamente formam casais heterossexuais sem questionar desejos e afetos. Butler nos lembra que abjeto não se restringe de modo algum a sexo e a heteronormatividade, abjeção de corpos é ter sua própria humanidade questionada por ser uma existência não normativa.

Portanto, é preciso reafirmar a necessidade e o espaço para o diálogo, e que se criem condições para que todas – cada uma com suas práticas, seus corpos, orientações sexuais e identidades de gênero –  enxerguem as diferenças e pratiquem a alteridade para conviver respeitando-se mutuamente.

Como essas estruturas dominantes podem ser desestabilizadas e modificadas? Propus pensar o meu corpo e a performance arte como estratégia de resistência política. “Desde o meu ponto de vista, a performatividade não trata somente de atos de fala. Também trata sobre os atos corporais” (BUTLER, 2006, p. 281).

Na década de 1960 os artistas plásticos abandonam os espaços seguros dos museus e impregnam suas obras de recursos do representacionismo, gerando uma espécie de teatralização das artes plásticas, sendo essas ações ou execuções conhecidas como happenings e performances (CABALLERO, 2016, p. 27).

No Brasil, os estudos de gênero em performances estão em pleno desenvolvimento, mas enfrentando muito preconceito principalmente no campo das artes contemporâneas.

Nas décadas de 1970 e 1980 era frequente o uso do corpo nu como forma de reapropriação política do próprio corpo, assim como ressignificação do espaço cotidiano enquanto extensão relacional do corpo. Num só tempo, também a partir dos jogos performativos da vestimenta, as pessoas, independentemente da sua orientação sexual, puderam ter acesso a novos modos de romper os laços entre a compulsão para a heterossexualidade e a dominação de um gênero sobre o outro. Nessa ruptura, o que conta é a perda de referência ou a encenação enquanto ficção política de um gênero específico. (HALBERSTAM, 2008 apud. SUTBS,2017).

 

Para Jack Halberstam, as masculinidades femininas são importantes estratégias para transgredir os gêneros, mostrando suas aparições em diferentes momentos da história, por meio das artes com destaque para a literatura, a fotografia e o cinema, mas isso ficou em contextos norte americanos e europeus, aqui no Brasil pouco foi o avanço e a inclusão de minorias em novelas, séries e filmes por exemplo.

As novelas possuem um papel importantíssimo na vida de brasileiros, são modelos de família, de estilos, de vidas, vendidos em horário nobre. A televisão torna-se um mecanismo eficaz de manipulação de poder, pois dita as regras do jogo social. Raramente vemos protagonistas lésbicas e gays, quando existem são estereotipados nos papéis de humor por exemplo,ou pessoas transexuais com papeis relativo ao seu gênero. A partir do momento que temos outras vozes em cena há uma ruptura na cadeia operatória das dinâmicas sociais.

Por meio de leituras sociais de corpos é que nominamos, denominamos e atribuímos valores a pessoas. Pensando que corpos dissidentes tem potencialidades transformadoras, como então posso auxiliar nos processos de reconhecimento e aceitação das diferenças sexuais e de gênero? “A despeito dessa flexibilidade conceitual, pode-se afirmar que um dos traços principais da arte da performance é o seu caráter autoral”. (BERNSTEIN, 2001, p. 93, grifo da autora). Se é no corpo que carregamos os estigmas que foram impostos, então é pelo corpo que   podemos ressignificar esse lugar que nos foi dado. Os corpos carregam discursos e os discursos habitam os corpos, então acredito que a Performance é uma potente ação transformadora de espaços, de significados, de lugares, de corporeidades.

 As performances se mostram potentes pelo fato de que corpos relegados aos guetos e as margens se transformaram no próprio suporte de arte, pois foram sistematicamente impedidos de estar e criar espaços de representação. Identificamos então que corpos abjetos carregam em si histórias que a sociedade não legitimou, por isso podem transformar-se de corpos subalternizados a corpos patrimônio, pois suas presenças produzem narrativas distintas das hegemônicas.

Desta forma que arte da performance ganha força e notoriedade no século XXI, pois as transformações sociais, culturais e urbanas são cada vez mais efêmeras e fluidas. Esses corpos dentro e fora de instituições geram discursos e potências que possibilitam a vida em detrimento da realidade de estatísticas de silenciamento e ocultamento.

Meu lugar de fala não pretende ser universal e sim localizado. Eu, mulher, cisgênera, lésbica, branca, classe média, com privilégios que muitas mulheres não têm. Mesmo assim a sociedade frequentemente não me reconhece enquanto cidadã. É neste lugar que tenho descoberto zonas que me colocam em campos de batalhas.

A performance art nascida como um exílio – exilio dos recintos dos artistas plásticos, que abandonaram os belos museus- abandonou os recintos onde se congelava a obra de arte, optando por utilizar formas da cultura popular e do mass mídia. Esta variante artística redescobriu outras dimensões da corporalidade. O olhar paródico e carnavalizador – o olhar político- dos atos performáticos projetou-se na construção de corpos grotescos que questionam modelos apolíneos dos cenários mais tradicionais. (CABALLERO, 2016, p.54)

Por isso que a performance tem se mostrado tão possível ao meu corpo e minhas vivências, pois se encontra no limiar entre vida e arte, auxiliando a redescobrir outras camadas de realidades, se constituindo enquanto campo possível para a disputa de narrativas.

As corporalidades se mostram cada vez mais fluidas e a estética e prática dos Drag Kings me interessa pois confronta ideias sobre arte, gênero, representação e representatividade. As práticas de Drag queen e Drag king, rompem momentaneamente com as designações de sexo e gênero, teatralizando e performando os gêneros, assumindo suas estéticas corporais e visuais propositadamente.

        Essas performatividades estéticas deixam marcas nos corpos e são vivenciadas de diversas formas podendo ser vividas de diferentes maneiras, por pessoas distintas. Através de diferentes corpos é possível perceber a construção, a produção e recepção de performances em que a performer é um corpo que não segue padrões normativos e hegemônicos. “O corpo é o campo de batalha, o artefato vivo, a fronteira onde se negocia visibilidade e invisibilidade para estabelecer um diálogo entre estas intensidades”. (BACELLLAR, 2016, p.66)

        E é nesse lugar fluído de descobertas que percebo as potencialidades de um corpo em ação.   A descoberta da Performance-arte permitiu localizar meu lugar de fala, por onde perpassam minhas vivências, entender que “o pessoal é político”, e desde estes pontos investigar e desenvolver pesquisas. Em um país que mata 1 (um) LGBTQI+ a cada 19 horas se faz necessário encontrar mecanismos para tentarmos extinguir os crimes de ódio cometidos contra essas populações por Lesbofobia, Homofobia, Transfobia e também crimes contra mulheres, como o Feminicídio que aumenta alarmantemente, a cada 11 minutos uma mulher é violentada no Brasil.

Entendo que é preciso falar e que a nossa presença é um ato político, pois os corpos indesejados trazem incômodos que podem se transformar em potencialidades de ação que auxiliam nos processos de alteridade e respeito às diferenças sexuais e de gênero.

O momento político em que vivemos é de grande tensão para as todas as minorias sociais. Os desmontes da cultura, da educação fazem parte de um plano autoritário neoliberal de perdas de direitos ao acesso básico à políticas públicas, que sempre foram lugares de disputas políticas e por isso devemos ocupar, transformar e pensar em estratégias de sobrevivências de sujeitas que não tem seus direitos humanos respeitados. Dito isso, a luta é “sobre-viver”.

Escrevo no dia 15 de maio de 2020, o Brasil e boa parte do mundo encontra-se em estado de Quarentena pelo Corona Vírus (COVID-19), que em dois meses matou cerca de 14 mil pessoas infectadas, em um país que tem seus recursos roubados, um presidente assassino, e o Sistema Único de Saúde (SUS), que já estava em colapso, não sabe mais o que fazer para salvar vidas. A política atual e a economia estão aos frangalhos, o Estado Nacional entrando em um cenário devastador em que as estruturas mostram suas rachaduras que a história tentou esconder, mas vemos claramente que a Colônia sempre teve seus donos, dizem que a escravidão acabou, mas não sua estrutura racista. A mão de obra barata, o “manda quem pode obedece quem tem juízo” essa é uma das frases prontas dita na República Federativa do Brasil, da elite branca e burguesa, verde e amarela que usa o palanque, a força e o estado genocida e miliciano para mostrar o porquê se deve ter juízo no Brasil de dois mil e vinte.

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BERNSTEIN, Ana. A performance solo e o sujeito autobiográfico. Sala Preta, n.1, p.91-103. São Paulo, 2001.

 

BUTLER, J. Problemas de gênero: Feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

 

BUTLER, J. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? 3ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017.

 

CABALLERO, I. D. Cenários Liminares. Teatralidades, performances e políticas. 2ª. ed. Uberlândia: EDUFU, 2016.

 

NAVARRO-SWAIN, T. Feminismo e Lesbianismo: A identidade em questão. Cadernos Pagu, Campinas, n. 12, p. 109-120, setembro 1999.

 

STUBS, R.; TEIXEIRA-FILHO, F. S.; LESSA, P. Artivismo, estética feminista e produção de subjetividade. Revista Estudos feministas, Florianópolis, v. 26, p. 1-19, outubro 2017.

 

 

 

[1] Aqui me refiro exclusivamente a mulheres que performam masculinidades, neste caso não me refiro aos homens trans, ou pessoas transmasculinas.

 

 


Mayra Silveira Pietrantonio

Graduada em Museologia (2018) pela Universidade Federal de Ouro Preto. Pesquisa a Museologia social com ênfase em gênero, sexualidades e o corpo como patrimônio. Licenciada em História (2011) pela Universidade Católica de Santos. É colaboradora na Queerlombos desde 2016 atuando em diferentes frentes da coletiva. Estando na Curadoria no ano de 2020.


 

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