“quais bixas podem ter direitos” Ou, o porquê de uma crítica queer ao direito

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por Rafael Aguiar

 

A reivindicação por direitos está no léxico das articulações lgbtq+ desde suas experiências individuais preliminares. Com o surgimento das militâncias e movimentos gays organizados na década de 1960/70 tal demanda começa a se institucionalizar, de certa forma. O produto desse processo parece ser a hegemonização das pautas de homens gays em detrimento de outras letras componentes da sigla. Esse momento inicial de movimentos gays, tal como o grupo “Somos”, importante na história da causa, é marcado pela inegável prevalência patriarcal, branca, burguesa, academicista, cisgenerificada – colonial – nas suas reivindicações.

No que diz respeito ao enraizamento da branquitude patriarcal, este encontra-se presente tanto na direita militarizada, quanto na esquerda burguesa, cristã, intelectualizada que deliberadamente ignorava “a necessidade de se pensar a sexualidade, o racismo, o machismo e o patriarcado, conjuntamente com as demais causas sociais” uma vez que tal perspectiva interseccional “era um instrumento fundamental para a mudança da estrutura social e o fim da opressão existente” (FERNANDES, 2015, p, 126). Na própria tentativa de articulação das militâncias e dos movimentos lgbtq+, a ação lésbica teve um papel fundamental ao reivindicar justiça de gênero como uma demanda não só em face do regime civil-militar, mas também nos polos da resistência que reproduziam autoritarismos raciais, sexuais e de classe em prol da manutenção de uma hegemonia endógena de pautas a serem defendidas.

O produto dessa hegemonização não poderia ser outro senão o ocultamento de opressões agenciadas que infiltravam aquilo que se pleiteava como cidadania sexual. As reivindicações por inteligibilidade jurídica edificadas em experiências majoritárias. Quando os movimentos organizado alcançam a esfera das institucionalidades, como é o caso da participação do movimento carioca “Triângulo Rosa” na Assembleia Nacional Constituinte (1987/1988),  as pautas erigidas perpassavam a defesa da liberdade sexual, a disseminação de informações sobre aid$ para a população gay e a defesa dos direitos de cidadania dos homossexuais masculinos (CÂMARA, 2015, 382).

A grafia “hiv/aid$”, utilizada no artigo em alternativa à “HIV/AIDS” adotada oficialmente pelo Ministério da Saúde, justifica-se como tentativa performativa de fazer aparecer a crítica, primeiramente, conforme trabalhava Herbert Daniel em seus escritos literários, que ao realizar um deslocamento em torno da grafia em maiúsculo e dos significados de “hiv/aid$” em minúsculo, impedia-se a infecção de roubar o protagonismo da vida de uma subjetividade, subsumindo um corpo a um diagnóstico. Ademais, a utilização do “$” no termo busca trazer a classe, a pobreza, como principal condicionante social hodierna para a evolução do hiv ao seu estágio sócio-politicamente construído como letal, a “aid$”, bem como trazer a classe como marcador social fundamental para os processos de criminalização da transmissão do hiv. Foto de Arthur Medrado da oficina Vivo Corpo HIV, ministrada por Kako Arancibia em 2018 na edição  Queerlombos: Afetos, Encontros e (Re)existência em Ouro Preto

 

 Para além das condições históricas de possibilidade que condicionaram a viabilidade dessas pautas ao ponto destas chegarem à Constituinte, nota-se que que tais pilares permanecem no léxico daquilo que se entende por movimento lgbtq+. Exemplificadamente, analisando os temas das paradas gays, posteriormente chamadas de paradas lgbt+, caminham pelas reivindicações de direitos como ao trabalho (1997), visibilidade (1998), acesso à políticas públicas homossexuais (2004) e casamento igualitário (2005) e criminalização da homofobia (2006).

Somente em 2007, 10 anos após a primeira parada em SP, a raça entra como pauta prioritária oficial. Com o tema “Por um mundo sem Racismo, Machismo e Homofobia”, a reivindicação por cidadania sexual passa a agregar a raça e, com isso, a crítica racial às pautas por visibilidade, reconhecimento e infraestruturas a corpos e subjetividades lgbtq+.

A suspeita que se levanta é que, desde a sua organização e institucionalização, os movimentos lgbtq+ expressaram sócio-politicamente demandas de vivências masculinizadas, brancas, burguesas, cristãs, intelectualizadas e cisgenerificadas. O produto disso não poderia ser outro senão a fixação do horizonte identitário nesses marcadores hegemônicos, que passam, então, a condicionar o acesso e exercício aos direitos intrínsecos à uma cidadania sexual normatizada, doravante, homononormativa.

 

O que o Direito, então, tem a ver com tudo isso?

Como ferramenta que tem como pressuposto uma violência na sua instauração e na sua manutenção, como lembra Walter Benjamin, passa a constituir a cidadania, aqui entendida como forma de inteligibilidade político-jurídica, a partir desse horizonte identitário estável, fixado em homonormatividades. Nesse processo, para fins de sustentar sua autoridade, o Direito passa a assujeitar dissidências, condicionando o reconhecimento jurídico à sua normalização. Normalização esta que aqui, nesse “cu do mundo” (PELÚCIO, 2016, p. 133), nesse abismo “sudaca” (PERRA, 2015, p. 6), compreende-se como assimilação à cisgeneridade branca patriarcal burguesa familiar.

Em 2016, na 2ª Semana de Diversidade de Ouro Preto e Mariana apresentamos o filme Enpaná de Pino, Dirigido por Wincy (Edwin Oyarce) com participação de Hija de Perra. O filme foi lançado por Caleb T.Gutiérrez-Rodríguez, companheiro de Hija de Perra que publicou o texto A caldeira de Hija de Perra aqui na nossa plataforma (link interno pro texto de caleb). Foto: Caleb T.Gutiérrez-Rodríguez

Tendo esse diagnóstico em vista, a crítica queer, especialmente as críticas queers de cor, parece ser um instrumental importante para tensionar os pressupostos dos movimentos lgbtq+ hegemônicos, levantando suspeitas em torno da sua constante tentativa de estabilização identitária em detrimento da inclusão articulada de outras análises para a compreensão de uma cidadania sexual plena.

O interessante das críticas queers, para além de autorxs com pretensões canônicas, é que seus pressupostos torcem e contorcem a si próprios como forma de interromper tentativas de hegemonização na conhecida geopolítica dos saberes nortistas. Para além de “santa Butler” e “são Foucault”, autorxs como Jasbir Puar, Jin Haritaworn, Ochy Curiel, Yuderkis Espinosa, Sylvia Tamale e Patrick Johnson parecem compromissadxs em racializar a discussão das gênero-sexualidades nas ciências sociais a fim de melhor compreender tais variáveis nas equações modernas da economia colonial do poder.

Logo, para fins de uma análise do Direito, as perspectivas queers devem ser vistas como críticas imanentes jamais apreensíveis aos seus dispositivos disciplinares modernos/coloniais que subjazem a prática jurídica e utilizam da sua autoridade para hierarquizar a partir de variáveis como raça, classe, gênero, etnia, religiosidade, sob o véu ideológico da legitimidade democrática. Como ponto de resistência, a crítica queer tem o dever de agenciar a pluralidade de marcadores sociais que assujeitam e inscrevem corpos na elaboração de propostas precárias, não essencializadas e necessariamente contrajurídicas. Um eterno devir queer, jamais completamente entendido e constantemente superado. Afinal, o direito moderno ocidental já possui um exército bastante convincente de enunciados autopoiéticos que sustentam sua estabilidade desde o século XVIII.

 

 

Referências

 

CÂMARA, Cristina. Um olhar sobre a história do ativismo LGBT no Rio de Janeiro. Disponível em: <wpro.rio.rj.gov.br/revistaagcrj/wp-content/uploads/2016/11/e09_a22.pdf>. Revista do Arquivo Geral do Estado do Rio de Janeiro.n.9, 2015, p.373-396

 

FERNANDES, Marisa. Lésbicas e a ditadura militar: uma luta contra a opressão e por liberdade. 125-148. In. GREEN, James e al. Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos: EdUFSCar, 2015, 330 p.

 

PERRA, Hije de. Interpretações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiro-mundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados com a heteronorma. Disponível em:<https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/12896/9216>. Revista Periódicus 2ª edição novembro 2014 – abril 2015.

                                                                                               

PELÚCIO, Larissa. O Cu (de) Preciado – estratégias cucarachas para não higienizar o queer no Brasil. Disponível em:<iberical.paris-sorbonne.fr/wp-content/uploads/2016/05/Pages-from-Iberic@l-no9-printemps-2016-12.pdf>. Número 9 – Printemps, 2016.

 

 


Rafael dos Reis Aguiar

Doutorando em “Direito, Estado e Constituição” pela Universidade de Brasília. É pesquisador do grupo de pesquisa “ Estudos Qonstitucionais : Teoria Constitucional e estudos queer” (UnB) e do “Ressaber” – Grupo de Estudos em Saberes Decoloniais (UFOP) Tem experiência em pensamentos fronteiriços e críticas queers ao Direito e ao Estado.

E-mail: rafael_aguiarfdmc@outlook.com/ @rafito_aguiar


 

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