Colômbia ocupada pelas corpas (sub)periféricas.

por Gio de Oliveira e Laura M. Quimbay
da  Plataforma Coletiva Queerlombos

Há algo em curso na Colômbia atual e que precisa ser colocado de maneira pontual e objetiva. Não há tempo a perder com as táticas repressoras de Ivan Duque contra o povo que deveria proteger. As imagens e relatos recentes de colombianes em Bogotá, Cali e outras cidades são a face do horror na terra, e bem aqui ao nosso lado.

Antes porém de adentrar a questão colombiana em si, é necessário lembrar que os povos e as democracias estão em perigo em toda a América Latina. Um projeto perverso se materializa entre as nações, de forma a reforçar as explorações seculares que vem operando desgraças nesse território. O Brasil mesmo, por exemplo, vem orquestrando o seu maior genocídio contemporâneo através da inépcia e dos desejos escusos de um presidente inapto e criminoso, que vem dificultando o combate à pandemia ao passo em que facilita o posse de armas. 

Numa escalada da violência sem precedentes e legitimada pela necropolítica de Bolsonaro, vemos assassinatos de lideranças ambientais, rurais, indígenas e negras com frequência assustadora. A chacina ocorrida na comunidade do Jacarezinho na quinta dia 06/05, revela a face viciada das polícias brasileiras e a letalidade das suas ações. Foram confirmados os assassinatos de 25 brasileiros nessa comunidade. Há um genocídio secular em curso.

Em Colômbia, também impressionam as violações dos direitos humanos que vêm ocorrendo. Desde 2019, a resistência colombiana vem requerendo direitos básicos aviltados secularmente. É sobre saúde, educação, moradia e acessos de qualidade. Em 2020, dado o contexto pandêmico, as movimentações se viram dispersadas, mas tomaram um novo fôlego a partir da Reforma Tributária proposta por Ivan Duque. O povo  a recebeu com duras críticas, cidades como Bogotá e Cali se tornaram praças de guerra, onde o estado Colombiano, abate as vidas de diversos cidadãos sobretudo jovens, em nome da pacificação civil e do combate ao vandalismo.

O que se avizinha para as próximas gerações latinoamericanas? Como tem se dado os processos de subjugação dos povos latino americanos na contemporaneidade? Existem paralelos possíveis entre as iniciativas autoritárias que percebemos na América neste início de século? Que espaços de fala, cuidado e formação estão reservados para os jovens latino americanos? A branquitude se atentará um dia para as suas responsabilidades históricas neste saqueamento secular? Preocupações como essas e ainda outras, percebo na fala de minha mana Laura M. Quimbay, que in loco, nos oferece detalhado panorama do contexto atual na Colômbia. É por acreditar na força de uma resistência latino americana, que a Plataforma Coletiva Queerlombos apresenta esta análise de conjuntura. Boa leitura!


Foto de Laura Quimbay, 2021

Sete de maio de 2021. Hoje começa o processo de materialização de uma escrita que por muitos anos esteve atravessada na minha garganta, se manifestando de forma espontânea entre reclamações, gritos na rua e escritas mal sucedidas e “pouco articuladas” em redes sociais. Nasci no território chamado Colômbia no ano de 1992, tenho vivido neste lugar entre violências e resistências. Tenho desejado não estar mais aqui desde muitos anos atrás, no entanto a crise tem me trazido de novo para insistir na vida aqui. 

Considero-me  uma sobrevivente da estrutura familiar heteronormativa, patriarcal e violenta que esta sociedade tem naturalizado. Uma sobrevivente dos regimes de controle religioso, do dogma cristão mais retrógrado e estéril que já vi. Conheci pessoas, que diferente de mim, morreram jovens nos bairros da localidade 10 de Bogotá – Engativa, sem acesso a uma educação digna, a uma moradia digna e a espaços de cuidado. Aqueles enunciados como “ñeros” (O que seria marginal no Brasil), perigosos, a “lumpem” para alguns setores envolvidos na produção da vida no sistema econômico capitalista. Corpos que junto com outros setores da população urbana e rural organizada e não organizada de várias faixas etárias, racializadas e empobrecidas, nos últimos 10 dias, vem ocupando as ruas de várias cidades, povoados e bairros da Colômbia.

Foto de Laura Cuervo, 2021

Compreenda-se assim, que quando falo de sobrevivência não estou me expressando de uma forma ilustrativa para adornar um discurso romântico de luta. Falo de sobrevivência como fato. Um fato pelo o qual atravessam, 42,5% da população colombiana que vive em pobreza e 15,1% vive em pobreza extrema [1] e [2] .

Falo de sobrevivência num país que teve 630 feminicídios  só no ano de 2020 e que no presente mês leva 52 feminicídios reportados e sistematizados. Falo de sobrevivência num país onde ser jovem, estudante e pensadorx crítica é uma marca de terrorismo (ainda que estudar aqui no exercício prático é uma questão de privilégio, porque nem todas as pessoas podem acessar a educação pública ou privada de qualidade). Um país que, ainda que eu não tenha acesso a uma fonte estatística oficial que mostre para você leitora ou leitor, assassina sistematicamente a jovens por serem pobres, por serem indígenas, negros, camponeses e estigmatizados como subversivos, por pensarem criticamente, por quererem condições de vida diferentes e diversas para si e para o povo do qual fazem parte. 

Vale a pena dizer que esta prática genocida da juventude é diária, não só nas manifestações atuais, mas também no cotidiano dos bairros, e especialmente nas periferias. Importante lembrar do massacre de 5 jovens afrodescendentes no setor de “Llano verde” em Cali, massacre que se atualiza hoje nos bairros de Siloé e La luna, onde jovens estão sendo massacrados dia a dia por se manifestar.  

Ainda que esta prática esteja documentada nos jornais independentes, nas organizações defensoras de direitos humanos e nas pesquisas universitárias, não há um reconhecimento e uma ação com fundamentos éticos e efetivos por parte das instituições estatais para a reparação e a não repetição destes fatos. Da mesma forma que tem incumprido acordos similares com outros setores. Ainda que, leitora ou leitor,  pedir isso a uma institucionalidade fundada na base do sequestro, da exploração e da eliminação de formas de vida não brancas, seja mais um paradoxo e um desafio ao qual temos que enfrentar para conseguir justiça histórica nos nossos territórios. 

Colômbia é um Estado que assassina as juventudes, que assassina às comunidades urbanas e rurais periféricas. Um país com um legado colonial que tortura, encarcera e elimina os corpos racializados, empobrecidos, vulnerabilizados e sexualizados para a manutenção do capitalismo-neoliberal. Um país no qual não existe a vida digna para todas as corpas que o habitam. Existir aqui é um ato de sobrevivência e isso se expressa de forma mais concreta nestes últimos dias de greve geral, nacional e popular. 

Desde o dia 28 de abril, depois de que o governo atual, igualmente genocida, arbitrário, branco e patriarcal aos anteriores, não satisfeito com sua má administração ante a crise desatada pelo SARS-CoV-2, pretendeu impor uma reforma tributária, uma reforma ao sistema de saúde e ao sistema de aposentadoria, que afeta à maior parte de população trabalhadora e que se encontram em programas de inversão social pela sua condição econômica e social. 

A partir desse momento as pessoas voltaram às ruas. Porque não falamos só desta nefasta reforma. Falamos também de anos de precarização da vida, anos de desaparições e assassinatos sistemáticos de lideranças sociais, de incumprimento dos acordos com as vítimas da guerra colombiana, com as comunidades negras, indígenas e campesinas. Falamos de décadas de subfinanciamento à educação e à saúde. Falamos da precarização das condições dos trabalhadores e trabalhadoras, do não reconhecimento das trabalhadoras e trabalhadores informais. Falamos do uso excessivo da força policial e militar. Falamos de aproximadamente 6400 “falsos positivos”, civis assassinados injustamente sob a politica de “guerra contra o terrorismo” [3] .

Foto de Laura Quimbay, 2021

Na última semana temos experimentado a descida a nível internacional da “democracia mais estável da América latina”. Colômbia revela a nível internacional sua precariedade como um Estado social de direito(s), revela seu autoritarismo e sua governança armada. Sua política de morte e silenciamento, sua ditadura disfarçada, e sim, eu com nome próprio assumo esta afirmação, na Colômbia nunca existiu uma democracia, isto é uma ditadura repartida entre as famílias mais ricas do país, entre as forças armadas cúmplices e as classes médias acomodadas com este regime.  

Segundo a ONG  Temblores [4] nos últimos onze dias tivemos 278 vítimas de violência física por parte da policia, 39 vítimas de violência homicida presumivelmente por parte da polícia, 936 detenções injustificadas em contra dos manifestantes, 356 intervenções violentas por parte da força pública  e assim mais cifras que manifestam o abuso de poder, falta de protocolo para atender as manifestações e o mínimo interesse da institucionalidade de dialogar com as necessidades dos manifestantes e seus contextos.

Assim, faço coro aos chamados de solidariedade entre corpas em resistência frente à colonialidade, ao capitalismo e suas práticas de exploração especista, ao capacitismo neoliberal, ao fascismo atualizado, aos regimes patriarcais, misóginos e a lgbtq+fóbicos que criam subalternidades. Sempre com uma visão crítica dos processos que adiantamos no dia a dia. Precisamos fazer frente às políticas de morte que se exercem em nossos territórios. Longa vida aos processos de resistência, cuidado e solidariedade entre as espécies.  

Fotos Lina Muñoz, 2021. 

COMPARTILHE!