VINIS MOFADOS

resolvi organizar
a bagunça na estante:

palavras empoeiradas
fotografias letra de
música vinis mofados

e uma coleção de
romances fracassados

 


ROMANCE B

não prometi amor
perfeito eterno
apenas uma trepada na noite
de sábado
goza veste a roupa
e vai embora

 

 

DOIDA CANÇÃO

procuro
você em outros
corpos não
encontro

suores noturnos
vestígios de gozo
no lençol velho
nenhuma pista

ainda sinto
seu perfume
quando ouço
caymmi

 

 

ANJOS DE RILKE

os anjos de rilke anunciados
anunciados na paranoia de piva
continuam
fudendo em mictórios
banheiros públicos

homens engravatados
muito ocupados com os valores
do dia disfarçam ignoram
para participar da prática

                                          (elogios à punheta)

brincadeiras denunciadas
agora estampadas
nas páginas de folhetins
policiais

 

 

 

POEMA ATRAVESSADO PELO MANIFESTO SAMPLER

para Fred Coelho e Mauro Gaspar

 

 

I

 invadir o corpo do mundo
aceitar
o
caos

atuar no esvaziamento das certezas

não copie e cole
se aproprie e recrie a realidade
use seu imaginário
carta de alforria para um primeiro

ato

nem todo início é um prólogo 

 

 

II

acredite
você não é original
certo
apenas a pureza de um
mito
a pressão não
é
simples
pratique
sequestro saque captura
de palavras

não comunique aos pais
toda palavra é
órfã
não
existem palavras
finais
toda palavra
é
começo

 

pirata capitão buquineiro
promessa de geração
00
remix de ideias
souvenirs
alô wally

ah se você ainda estivesse por aqui

não escrever sobre
não descrever ou reproduzir
o mestre
produzir escrever produzir

eu
estou menino
em suas palavras
não chame meu nome em vão
salte a pedra
no caminho

 

III

seja atravessado pelos poetas que lê
aniquile as referências
um coletivo de enumerações

faça

literatura sem agradecer a raduan

ou adalgisa
faça
você seu retrato

enquanto jovem

encontre suas ideias
a partir de
apesar de
(lembra dela?)
apesar
de
invasor
ao combate
quais os limites
do texto?
autores originais
não mais

viva de uma forma política
crie assim
invada a cidade

 

invente
coloque tudo para dentro
para depois respirar
sentir e notar

você
eu estou colocando
pra dentro
o chocolate
de tanto olhar
ler

 

IV

propriedade coletiva
eu sou vocês
sou eu nos
reconhecemos nas palavras
lidas e não ditas e não lidas
também
percebe
posse-criação


os mentirosos
são dignos
do amor
deus
em latim é fingidor
da via
criação
escreva tudo
com essa mão nervosa
escreva escreva
as vozes que habitam
em ti
no papel
selvagem caótico
esse texto não é
seu nem meu
esse texto pertence
apenas
ataque
perigo ritmo
sem receio da autocrítica
se aproprie dos rótulos
para destruí-los

plagiador sabotador
coroe sua intimidade
perturbe
seus pares
não os deixem
presos
no século passado
o aprendizado
as vanguardas e a tradição
modos de usar
sua língua
esqueça os ismos
a divisão didática
atravesse
seja tático

  

V

cale
a boca de quem
não se posiciona
no espaço
torne seu o que é
do outro
provoque todas
as encenações institucionais
modo de fazer
aprender fazendo
seu trabalho
diário

 manipule a história
alheia escreva a nossa

invente
seja autor inventor
o leitor

deve reconhecer seus passos
caminho percorrido
está
tudo no passado
o futuro se tropeça
com ele

 

a poesia se esfrega nas coisas
percebe?
ao acordar veja as coisas
como
as coisas todas

espalhadas livros jornais
mesquinhez de sua relação
amorosa

você pode abrir sulcos na escrita

fluxos
corpo é texto

é corpo
emancipe sua escrita
deixem falar mal
amanhã

estão todos lambendo seu rabo

discuta apenas sua
existência
na palavra

leia
escreva
como quem atravessa
o leitor
subverta

transforme o meio com a palavra

transtextual
células trans
transexual

exu contemporâneo se aloja no outro
passado tomando o presente
de cavalo

 

VI

ultrapasse
a si mesmo
não trapaceie é fatal
amadureça
a experiência
seja através
dos outros

a verdadeira história da literatura
uma história de ladrões
experiência
número infinito
o homem forte vive

lembre dos outros
entenda

as relações de força
você ouviu de um artista de plástico
vale tudo só não vale
qualquer
coisa
as coisas negras são
tão bonitas
menos o cavalo
beba
ice tea light
com limão e gelo
lipton com muita cafeína
no cafeína
não imite
escreva a partir
de
dobre a linha da folha
dobre-se
você sabe que o papel
só pode ser dobrado
sete vezes
hum
modo de
de experimentar
os espaços
nascemos com os mortos
sempre
o fim é o meio
novo desvio
novidade sem novidade
caminho literário cercado de música

ouça
não é preciso citar
não é
faça
teses para corrompê-las
o texto tem sentidos
não
sentido
fazer ao ler
a linguagem não indica sentido
mas possibilidades

as palavras
penetram em você
ou não
use todos os guardanapos
do café

com leite e biscoito de maisena
(compensando os 10% de mal atendimento)
ganhar força com as ideias
pense no tempo
em nosso tempo
tempo
tempo
tempo
tempo

silêncios
incorporados na escrita

esquecimento como aprendizado da escritura

invasão pela leitura
esse poema não tem
fim
é o meio

 

 

ANTES DE MERGULHAR

 

I

olhar
o mar
e não pensar
tudo o que sei
fazer

 

II

isso quando
você não aparece
rodopiando rodopiando
aparece
entre as espumas

 

III

estranha eternidade
daquilo que amamos
em ondas
repetimos gestos
de nossos antepassados
sem saber
onde começa onde termina
a verdade o desejo

 

IV

ouço o balanço
longe daqui

enquanto você rabisca uma ilha

colorida
num amassado pedaço
de papel

 

V

levante
vá até a janela

antes de mergulhar
mire

a felicidade dos pássaros acima das pedras

nus

 

 

À DERIVA

 

jogar a rosa
o coração feito

âncora

 


DIÁLOGO COM WILLIAM S. BURROUGHS

ser
extraplanetário
eu sou o outro você

in lak’ech ala k’in
transformo
objeto em sujeito

a linguagem
o verdadeiro vírus

 

NÃO INSISTA


meus poemas são os nudes

 

 

 

 

 

 

 


ACTO DE FÉ


22 de fevereiro de 2006
na cidade do porto
gisberta salce júnior
45 anos mulher transexual
soropositiva

torturada por três dias
pedradas pauladas chutes
sexualmente torturada
corpo dilacerado queimado
com cigarros

e jogada
em 15 metros de agonia
afogou-se na violência e no preconceito
em nome do pai do filho e do espírito santo
de 14 jovens católicos


 


no poço
fundo

sem fim
amém

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


CANTO SOBRE AS RUÍNAS DA CIDADE

OU CLAMOR AO POVO DA MATA

 

para Amora Pera e Pedro Rocha

 

no meio do rio
enxergamos apenas os
escombros onde dançamos nosso medo
e revolta sem saber

                                                                                               

para onde ir?
o poeta dançarino
foge para o coração da mata
clama por proteção
oke oke oxóssi

 

caboclo senhor da mata 
abra nosso caminho da
autocompreensão

 

sem rumo nem memória

                                                                                                            vagamos

entre as cinzas
de um futuro incerto
agora com o arco e flecha
na mão
o poeta cantador toca seus tambores
para chamar o povo nas ruas
para chamar o povo de rua
traz a história no verso
no canto no grito
ri ro ewá

 

bela virgem rainha do céu estrelado
e do cosmos que xangô se apaixonou
mãe floresta senhora da vidência
e criatividade levante 
a força do feminino
nossos sonhos de séculos
não estão destruídos
cada mosaico dessa história
está em suas raízes

 

procuramos a terceira margem
do rio pensamos que 

                                                                                                                  estamos sós 

até ouvir seu canto
como uma oração
de resistência


———————–
NOTAS


Os poemas VINIS MOFADOS, ROMANCE B e DOIDA CANÇÃO foram publicados no livro “Vinis Mofados” (Língua Geral, 2009).

Os poemas ANJOS DE RILKE e POEMA ATRAVESSADO PELO MANIFESTO SAMPLER foram publicados no livro “Poemas tirados de notícias de jornal” (Móbile, 2011).

Os poemas ANTES DE MERGULHAR, À DERIVA, DIÁLOGO COM WILLIAM S. BURROUGHS e NÃO INSISTA foram publicados no livro “Há um mar no fundo de cada sonho” (Verso Brasil, 2016).

O poema ACTO DE FÉ foi publicado no livro “Tente entender o que tento dizer: poesia + hiv/aids” (Bazar do Tempo, 2018. Org. Ramon Nunes Mello).

O poema CANTO SOBRE AS RUÍNAS DA CIDADE OU CLAMOR AO POVO DA MATA foi escrito para o projeto Afluente (2019), com curadoria de Katia Maciel, no Parque Lage – RJ.

 

>>> Ouça o POEMA ATRAVESSADO PELO MANIFESTO SAMPLER: 

https://soundcloud.com/ramon-nunes-mello/poema-atravessado-pelo-manifesto-sampler_de-ramon-nunes-mello?in=ramon-nunes-mello/sets/minhas-naus

 

 


RAMON NUNES MELLO


Ramon Nunes Mello (Brasil, 1984) é poeta, escritor e ativista dos direitos humanos. Autor dos livros “Vinis mofados” (Língua Geral, 2009), “Poemas tirados de notícias de jornal” (Móbile, 2010/2011), “Há um mar no fundo de cada sonho” (Verso Brasil, 2016) e “A menina que queria ser árvore” (Quase oito, 2018). Organizou “Tente entender o que tente dizer: poesia + hiv / aids” (2018) e “Ney Matogrosso, Vira-Lata de Raça – memórias” (2018). Poeta convidado do Rio Occupation London no Battersea Arts Centre (Londres, 2012) e da Festa Literária Internacional de Paraty (2016).

e-mail: sorrisodogatodealice@gmail.com 


 

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