Sobre Zonas de Encontro, Queerlombos e pandemia

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por Idylla Silmarovi

Foto da artista para seu espetáculo “Guerrilha” que investiga as memórias das mulheres que lutaram contra as ditaduras na América Latina. Experimento em torno de um Teatro de Guerrilha. Fonte: Instagram da artista.

 

Sobre Zonas de Encontro, Queerlombos e pandemia.

 

            Este texto parte de uma suspensão. Tanto espacial quanto temporal. Desse hiato de tempo que nos encontramos em casa, evitando sair pela ameaça de um vírus que já nos atingiu em nossos inconscientes, que nos invade os sonhos, que cria ausências. É um texto diálogo a partir de algumas coisas que tenho pensado, lido e escutado nesse momento.

            Como artista das artes presenciais, me pego refletindo neste tempo, na ausência dos espaços de convívio, das artes presenciais, em como nos movimentamos na imobilidade. Não há respostas, sequer tenho perguntas, brotam pensamentos que são reflexo desse estado de incapacidade de mudança, mas que nos constrói a paciência da espera e a confiança de que algo gira a partir disso.

            Zona de Encontro, é uma residência entre artistas de várias áreas que se encontram para construir juntes outras memórias e outras formas de nos referenciarmos a partir da escrita coletiva de uma revista. Como diretora artística desse projeto, venho refletindo sobre o que seria nos encontrar hoje. Como nos aqueerlombarmos distantes do real, do corpo a corpo, ao vivo e a cores. Sim, a internet tem sido o meio. Mas um meio limitado! Ela não dá conta dos suores, do toque, do olhar profundo, daquela sacada que você dá em um companheire e percebe se está bem. Dá conta do que tange a superficialidade. Apesar disso, dá conta de uma explosão de debates e “encontros” que em muitos casos não teríamos acesso por não podermos estar em dois lugares ao mesmo tempo.

            Esse vírus que ameaça apenas a espécie humana, pode ser um contragolpe dessa nossa mãe terra que está enfadada e envia seu recado. Talvez esse contragolpe nos force a perceber o mundo e a nos perceber no mundo de outro modo nos trazendo outras miradas. Mas o vírus aqui posto não é apenas a Covid, esse vírus é também o próprio capital, que rasga as feridas e agora as tem expostas, explicitando a sua violência, a sua corrupção, a sua miséria. Esse vírus do capital que determina quem deve viver ou morrer, quem deve se contagiar e quem não e, em caso de contágio, quem terá mais chances de sair dessa e quem não conseguirá respirar. Vírus, esse,   que coloca o ter antes do ser. Não é a primeira vez que vivemos uma pandemia, em nossa história recente dos últimos 520 anos já passamos por várias, que levaram muitos dos nossos ancestrais. Esse vírus do capital que vem do colonialismo, como aponta o grupo Indigenous Action “Capitalismo é o vírus, colonialismo é a praga”.     

            Não tenho um olhar para esse momento que possa se dizer pessimista, ao passo que não sou das good vibes, mas acredito que essa dor de mais de 20 000 mortos só no Brasil até o dia da escrita desse texto tenha algo a nos ensinar. Mas enquanto o vírus avança e as mortes aumentam, continuamos reféns de um plano político, de uma guerra de poderes que antes de nos perceber nos desejam mortos. E minha reflexão tem sido principalmente em torno da morte nesse momento.

            Tenho o costume de olhar para o teatro e pra arte de forma parecida como vejo os cemitérios. Um espaço de muitos afetos, de explosão de sensações que por vezes evitamos sentir. No que se mostra, a superfície tem beleza, flores de várias cores e perfumes, cruzes pintadas de azul, um cenário de esculturas, imagens repletas de cores em contraposição com o marrom da terra. Um lugar que possui tantas camadas em seu subsolo e que é cavado por homens e mulheres, covas de suor, trabalho duro esse de enterrar os mortos ou desterra-los. Os cemitérios, esses que carregamos nas costas, assim como as artes, são sagrados – sem romantismos em relação a palavra sagrado, porque ali muita coisa acontece e se transforma nas intimidades. Os cemitérios, assim como as artes, são territórios em que os corpos se convertem em alimento, ali se come.
No texto “Carta aos Atores”, Valerie Novarina aponta que “O ator não executa mas se executa, não raciocina mas faz todo seu corpo ressoar. Não constrói seu personagem, mas decompõe seu corpo civil ordenado, suicida-se. Não se trata de composição de personagem, mas de decomposição de pessoa. (…) O ator que representa a fundo, do fundo, carrega em seu rosto o seu rosto desfeito, sua máscara mortuária (…) ele mostra seu rosto, carregando seu morto, desfigurado”.
           Ao ver a foto do cemitério público de Manaus, aquela mesmo que se espalhou nas nossas vidas virtuais, sinto que ele se faz palpável e nos toca muito de perto, o marrom da terra, se desviando no azul bebê das cruzes. É importante saber, que quando falamos sobre e olhamos a morte estamos lidando, em primeiro plano, com a vida em sua potência e é nela que nos apoiamos.

            Mas ficamos tão estarrecidos diante de toda a situação que estamos postos que a sensação que meu corpo as vezes experimenta é a de tentar puxar o ar com a cabeça amarrada a uma sacola. Essa sensação de estar estarrecida, que é também considerada uma das etapas do luto, é como um estado de perplexidade, assombro, de imobilidade. Esse estado, de vivermos enfiados em nossas casas e a ressignificação do espaço “casa” ao longo desse isolamento, com as bruscas instituições de rotinas, hashtags, viralizações, lives, festivais, humor político, maratonas de séries… Até que ponto não estamos sendo domesticados a viver uma grande crise como se ela não existisse com toda força que ela tem? Até que ponto não estamos nos anestesiando diante do mundo?

            Nos jornais, Brasília pega fogo e o nosso quadro político parece competir com o caos que a pandemia em si já causa. Por muito menos Dilma caiu. Ele não. É como se o acúmulo de demandas de manter a sanidade mental, cuidar das pessoas que amamos, lidar com o luto mundial, colaborar com grupos que estão sendo muito afetados, fazer o corre do aluguel, manter os estudos e afins, nos deixasse naquele estágio em que a anestesia geral começa a fazer efeito. As vozes ficam distantes, se confundem, as imagens embaralham. A compreensão desse tempo exige um saber do corpo desperto, vivo e sensitivo. Um corpo em performance. Um corpo em ação.

             Estamos emaranhados nesse barco, brancos, pretos, vermelhos, amarelos, marrons, mestiços… Impossibilitados de realizar os ritos tradicionais de morte, tantas são as tradições e pessoas que estão ausentes do contato com esse mistério tão sagrado. Ausentes de adeus, independente de como seja feito. Emaranhado diz daquilo que se mistura confusamente, daquilo que não tem ordem, complicado. E é complexo mesmo. Afirmar que estamos emaranhados não quer dizer que estamos iguais, nunca estivemos por nunca fomos. 

           Ailton Krenak diz que desde 1500 estamos em guerra e que ela nunca acabou e nunca teve uma trégua. Essa terra é, sempre foi e voltará a ser, eu espero. E seguimos em guerra agora enquanto eu escrevo esse texto, enquanto você lê. Nessa luta borda-se o luto de tantos que perdemos, dos que nem sabemos exatamente como perdemos e dos que perdemos ainda que estejam vivos. Essa política da morte e do ódio com sérios problemas sexuais, faz com que percamos muito, não apenas enterrando corpos, mas subjetividades, possibilidades de futuro, conhecimentos ancestrais e, com elas, não conseguimos estancar o sangue que correm nas veias abertas. 

Esse estado atual de pandemia, além de todo o caos, medo e tristeza que gera, traz consigo uma série de questões no campo das artes cênicas. Esse momento, ninguém sabe nada a respeito de nada, inclusive me perdoem as contradições desse texto, mas é difícil manter a coerência num tempo de ideias tão distópicas, é difícil até pensar numa ideia de futuro, uma vez que a nossa história é desenhada pelas mãos dos vencedores, dos brancos, dos homens, dos ricos, talvez o futuro seja uma farsa ou uma invenção que será desenhada com nossas mãos e bordada com nosso suor.

Apesar de, tentamos e re-existimos, porque somos insistentes especialistas em sobreviver. Nesse mundo pandêmico, nos fechamos em casa não só para evitar a doença mas para buscar curas, caminhos, outras possibilidades para o mundo e para a arte, para que não precisemos mais abdicar da presença, valorizando a importância das artes vivas e presenciais, escrevendo novas histórias, revolucionando as linguagens, as metáforas e os símbolos, canibalizando as referências, cambiando a mirada, retomando os corpos, para dar luz, a essa nova vida que saíra em meio aos escombros. O teatro é antes de tudo, uma atitude diante da vida, uma tradição “amantearcal” milenar e ancestral que precisa retornar às suas raízes, rompendo com os acordos coloniais. Que possamos sair como recém-nascidos de um novo mundo que se forma. 

Esse texto não pretende pesar o rolê, muito pelo contrário, pretende da dor tirar  esperança, possibilidade, troca. Lidar com o que dói também é fundamental pra um caminho de cura e, como diz Célia Xacriabá, a cura não é apenas a vacina. Na verdade toda essa reflexão é para levantar o céu e deixar ventar nos nossos rostos novos desejos, e nós temos muitos.

Quando isso passar, desejo me desbundar ao lado de José Celso, fazer do meu corpo revista como Jaci Aymoré, destemida como Luz del Fuego, reinventando meu gênero como Hija de Perra, ser clássica e contemporânea como Fernanda Montenegro, forte como Cacilda Becker regada a poesia implacável de Grace Passô.

            Um dos sintomas da Covid é a falta de ar. Talvez essa dificuldade nos ajude a criar estratégias de respirar juntes e isso também significa conspirar.

link da revista online (se possível, inserir um preview): 

Zona de Encontro – Volume 1 – Texturas – Org. Idylla Silmarovi

 


Artiste: Idylla Silmarovi

É Sudaca, artista da cena e pesquisadora. Investiga as interações entre arte e ativismo no que tange gêneros, sexualidades e estudos culturais latino-americanos.

instagram: @idylla_silmarovi
facebook: idylla.silmarovi
email: idyllasilmarovi@yahoo.com.br


Zona de Encontro

É uma plataforma que visa a partir de residências criativas desenvolver coletivamente uma revista para a produção de memórias acerca das artes femininas, feministas e transfeministas em Belo Horizonte.

Instagram: @zonadeencontro
facebook: zona-de-encontro
email: zonadeencontro@gmail.com


 

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