Sobre SER – Experimento para tempos sombrios e a sua relação com o presente

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Por David Maurity. maio de 2020

Esse espetáculo é um solo do ator e performer Rafael Lucas Bacelar, integrante e co-fundador da Companhia de teatro Toda Deseo, de Belo Horizonte, MG. O trabalho foi concebido em 2016 e segue uma pesquisa dentro das questões LGBTIA+ relacionadas aos corpos, sociais e artísticos, identidades de gênero e orientação sexual que vem sendo realizada pela companhia desde 2013, ano de sua criação. Nesse momento em que o mundo está sob uma crise de saúde pública, enfrentando uma pandemia de proporções inimagináveis e onde o isolamento/ distanciamento social é uma das medidas preventivas mais eficazes, SER – Experimento para tempos sombrios pode ser lido hoje como uma denúncia.

Para diminuir a disseminação do vírus COVID-19 e evitar o seu contágio, é necessário evitar o contato dos corpos, a aproximação entre as pessoas, e essa medida não faz concessões: ela é válida para absolutamente todas e todos, independente do recorte de classe social, gênero, raça ou etnia. A recomendação pode parecer arbitrária (e talvez seja), mas ela antes de ser uma obrigação, ela é uma opção. Os órgãos ou instituições de saúde recomendam essa atitude. E recomendar tem por sinônimos aconselhar, advertir, fazer observar. Verbos e expressões que denotam escolha, uma opção. Em prol de um bem-estar coletivo, é possível dizer que estamos vivendo um isolamento social voluntário, mesmo que muitos e muitas não entendam o seriedade dessa proposta e que ela não fere o seu direito à liberdade, ela é uma ação de manutenção dessa liberdade que preza pela vida das pessoas.

SER – experimento para tempos sombrios é um manifesto cênico sobre corpos considerados por parte da sociedade como fora da norma, dissidentes, erráticos: corpos LGBTIA+. Ao longo da história esses corpos foram e ainda são considerados doentes biológica e moralmente falando, portanto, suas identidades e desejos desviantes da norma heterossexual precisam ser tratados e/ ou retirados da sociedade. Afinal, há quem acredite que, tal qual um vírus, isso pode ser transmitido e as pessoas podem ser infectadas.

Em Vigiar e Punir – Nascimento das prisões, livro em que Michel Foucault documenta a evolução histórica da legislação penal e de métodos coercitivos, traz no capítulo intitulado “Panoptismo”, em seu início, um panorama do policiamento espacial, no século XVII, quando uma cidade declarava a presença da peste. A partir dessa declaração, as ruas eram entregues ao comando de um intendente, as pessoas, abastecidas para o período da quarentena, eram trancadas em suas casas; relatórios eram feitos sobre cada uma das casas e a situação de cada um dos seus moradores e qualquer desobediência àquelas regras seria punida com a morte. Todo e qualquer movimento era controlado, inclusive “a relação de cada um com sua doença e sua morte passa pelas instâncias do poder”[1]. Toda essa vigilância é o que Foucault chama de modelo compacto de um dispositivo disciplinar:

A ordem responde à peste; ela tem como função desfazer todas as confusões: a da doença que se transmite quando os corpos se misturam; a do mal que se multiplica quando o medo e a morte desfazem as proibições. Ela prescreve cada um seu lugar, a cada um seu corpo, a cada um sua doença e morte, a cada um seu bem, por meio de um poder onipresente e onisciente que se subdivide ele mesmo de maneira regular e ininterrupta até a determinação final do indivíduo, do que o caracteriza, do que lhe pertence, o do que lhe acontece.[2]

Ao descrever todo o monitoramento realizado para o controle da peste, Foucault demarca a intensa organização e o aprofundamento das vigilâncias que marcam uma política de exclusão e de segmentação, através da individualização dos sujeitos, determinando-os enquanto normais ou anormais, dignos ou indignos de viver em sociedade.

Partindo desses pressupostos e traçando um paralelo entre a pandemia atual e as pessoas LGBTIA+, o que temos é uma espécie de encarceramento social dessa comunidade, ou um isolamento compulsório por “agentes de vigilância” que antecede a existência do vírus. As instituições que imputam valores como, por exemplo, igreja e a família, são responsáveis por esse movimento e agem diretamente sobre esses corpos, seja na tentativa de uma construção unilateral do seu desejo, no controle da sexualidade, seja no cumprimento de uma norma heterossexual. Afim de escapar da ação desses agentes, que condicionam a reprodução desses valores, os sujeitos LGBTIA+ se isolam, se distanciam socialmente mantendo-se periféricas, abjetas, com o objetivo primeiro de preservar as próprias vidas. Esse movimento antecede a crise causada pela existência do COVID-19 e algo parecido ocorreu durante a epidemia de HIV-Aids nos de 1980 e início da década de 1990.

Na direção oposta a esse movimento de isolamento que é imposto a esses sujeitos, o SER em cena nesse espetáculo evoca a diferença, denunciando toda a repressão, reivindicando ao público o seu poder existir sob o viés da alteridade a fim de que reflitamos a respeito das opressões e a reprodução de preconceitos.

O SER em cena está só. O palco é o espaço da experiência de expansão do corpo e da identidade. Por meio de um processo performático de colagem de vários elementos: textos originais, reescrituras e movimentos coreográficos, o espetáculo estrutura a possibilidade de tornar visível e materializar a existência desses sujeitos, sugerindo simbolicamente a proliferação e a multiplicação das formas de gênero e sexualidade.

 

Sobre a Companhia de Teatro Toda Deseo

 

A TODA DESEO se monta e se desmonta. Se arma com seu corpo, maquiagens, tecidos e contribui para novas configurações do visível. Teatro político contemporâneo que busca uma paisagem nova do possível. Cria elementos e dispositivos de resistência e luta em tempos sombrios.

Em seu repertório, a companhia tem os trabalhos: “Espetáculo-Festa: No Soy un Maricón” (2013), resultado de uma pesquisa sobre a estética e o universo das drag queens, das boates e cabarés; “Campeonato Interdrag de Gaymada” (2015), intervenção urbana que reflete sobre a intolerância e invisibilidade; “Nossa Senhora” (2016), espetáculo de rua que questiona a configuração tradicional de família e a religião, bases de uma estrutura social machista e heteronormativa, responsáveis pela manutenção de diversas opressões e preconceitos; GLÓRIA (2018), um trabalho sobre as memórias dos artistas e experiências atuais relacionadas à igreja (e as religiões judaico-cristãs) no real deste nosso tempo; e Quem é você? (2019), espetáculo infanto-juvenil que fala da necessidade de abandonar a segurança do conhecido e arriscar-se em busca de si mesmo, enfrentando preconceitos sociais e reafirmando seu lugar no mundo.

 

TEASER

[1] FOUCAULT. Vigiar e Punir, p. 163.

[2] __________ . Vigiar e Punir, p. 163-164.

 


Toda Deseo

É uma companhia formada por artistas mineirxs, com trabalhos que relacionam teatro e performance com questões LGBTIA.

Instagram: @todadeseo
Facebook: facebook.com/todadeseo
Email: contatotodadeseo@gmail.com

 


 

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